Você é um herege? Depende do ponto de vista

Heresia! O grito continua ecoando hoje, tanto quanto ecoou no tempo da reforma na boca de católicos e mais tarde entre os próprios protestantes, ou mais longinquamente entre gnósticos, arianos, donatistas, montanistas e a ala mainstream do cristianismo. Talvez os primeiros a usarem o termo foram os cristãos judeus, ou seriam os cristãos gentios os […]



22 de outubro de 2014 Alex Reflexões

Heresia! O grito continua ecoando hoje, tanto quanto ecoou no tempo da reforma na boca de católicos e mais tarde entre os próprios protestantes, ou mais longinquamente entre gnósticos, arianos, donatistas, montanistas e a ala mainstream do cristianismo. Talvez os primeiros a usarem o termo foram os cristãos judeus, ou seriam os cristãos gentios os primeiros? O termo significa “partido” ou “grupo”. Uma “haeresis”, em grego, nada mais é do que um grupo de pensamento, logo fariseus, saduceus, sicários e nazarenos eram grupos ou haeresis do judaísmo do primeiro século da era cristã.

HERESIA! Como um grito de ordem contra alguém outro é o que se tornará essa palavra diante da discussão sobre quem está certo e quem está errado em matérias doutrinarias no seio da Igreja Cristã. Como heréticos, a partir do concílio de Nicéia em 325, passariam a ser denominados os grupos que defendiam um posicionamento diferente daquele definido pelo concílio. Estes concílios formularam Confissões de fé. Textos curtos, com sentenças claras e bem definidas. Porém motivo de grandes debates, alterações, reformulações e por fim concórdia. Uma Confissão tem a função de unir a comunidade cristã em uma só voz quando o assunto são as doutrinas centrais e fundamentais da fé cristã. Por lógica se deduz então que a segunda função da confissão é demonstrar quem não está unido à comunidade cristã. Assim, se a Confissão ou Credo afirmam que Cristo possui duas naturezas que coexistem em um só Cristo, os que defendem outras posições como os arianos e os monofisitas estariam por tabela fora da comunhão cristã. Seriam a partir deste ponto marcados com o anátema, ou em linguagem de hoje: cai fora!

HERESIA! Assim gritariam irmãos dentro de uma igreja uns contra os outros por detalhes interpretativos após a morte de Lutero. Aqueles que poucas décadas atrás estavam sendo duramente reprimidos pelos católicos, agora reprimiam seus irmãos e parceiros na Reforma por causa de pequenas diferenças na interpretação da Confissão de Augsburgo. Por exemplo, debateram fortemente Philip Melanchton e os gnesio-luteranos (verdadeiros luteranos) a respeito das cerimonias, liturgias e formas externas de culto. Para Melanchton, as formas externas não importavam, e as liturgias católicas podiam ser utilizadas. Para os gnesio-luteranos não, quem as utilizasse estaria abdicando da Confissão de Augsburgo. Neste contexto nasce o termo latino “status confessionis”, que significa “status confessional”. Trocando em miúdos, a pergunta recai sobre quais temas tem status confessional e quais não tem. Que assuntos realmente nos dividem a ponto de não podermos estar na mesma comunhão eclesiástica e quais assuntos são apenas divergências secundárias e que não deveriam acabar com a comunhão.

Mais tarde na história do luteranismo o assunto do “status confessionis” voltou. Desta vez debateram os luteranos ortodoxos contra os pietistas. Estes últimos afirmavam que um cristão verdadeiro não deveria participar de divertimentos mundanos, tal como teatro, bailes e festejos populares. Novamente a pergunta tinha que ser colocada: lazer tem “status confessionis”? Uma pessoa que confessa a fé cristã mas frequenta o teatro deveria ser considerada como um “pagão”?

Nos anos da cortina de ferro, a partir da Conferencia do Conselho Mundial de Igreja em Uppsala (1968), foi proposta uma reinterpretação ético-política de heresia. Alguns teólogos passariam a chamar de hereges os cristãos que defendessem o uso de armas nucleares, como na declaração reformada da Igreja Presbiteriana de Cuba. O argumento remonta à Dietrich Bonhoeffer e sua luta contra o regime nazista. Ele não aceitava que a Igreja Alemã se aliasse ao regime político de Adolf Hitler se tornando coparticipante da política racial nazista. Para Bonhoeffer e para os cristão da Igreja confessante, a Igreja só podia ter um Senhor, a saber, Jesus Cristo. Esta era a razão pela qual a política se tornara uma questão confessional.

Escrevo este texto para quem está na internet. Pra você que tem uma conta nas redes sócias e se expressa através delas. É nesse contexto que percebo um grande risco para a unidade dos cristãos. Claro que também é nesse contexto que percebo questões fundamentais da fé cristã sendo barateadas. Não sou cego, vejo sim um evangelho que não se articula numa vida transformada, mas isso precisa ser dito sob várias óticas:

Direitistas e esquerdistas cristãso tem dado à política status confessionis, quando a esquerda afirma que a direita odeia o pobre, que dá preferencia ao capital, que não valoriza os direitos dos trabalhadores e a igualdade de oportunidades. A direita dá status confessionis quando acusa a esquerda de tentar instaurar o reino de Deus via política, de não dar atenção às perguntas da ética e moral cristãs, de desconsiderar a individualidade em prol da coletividade. Ambos os grupos erram, ao atribuir a uma discussão no campo da ética política caráter normativo para a fé cristã.

O mesmo acontece com questões como aborto e direitos civis dos cidadãos LGTBs. Creio que estes assuntos são importantes e devem ser debatidos. Creio que os cristãos tem o direito de expor seus pontos de vista a partir de sua ética e moralidades próprias. O que eu rechaço, é que um grupo de cristãos queira dar status confessionis para estes assuntos, ao proclamar anátema sobre outros cristãos que sejam favoráveis ao direito do aborto e aos direitos civis dos cidadãos LGTBs.

Vemos grupos proclamando anátema uns contra outros. No cristianismo de internet, todos somos hereges sob o ponto de vista do grupo “adversário”. Não importa quem realmente tem a razão, importa que você está errado e não é cristão para algum grupo no outro lado do espectro cristão na internet

Ainda que tenhamos um fosso que nos separe por causa de diferenças teológicas, de interpretação bíblica, de compreensão de mundo, de reflexão ética, não estamos tratando de trindade, cristologia, soteriologia ou esperança escatológica. Não podemos tratar questões éticas como se estas fossem critério último para decidir quem é, e quem não é cristão. Observe que ambos os grupos tem seus argumentos obtidos através da reflexão bíblica. “Abortistas” e os favoráveis ao “direito à vida” se posicionam utilizando conceitos como a regra de ouro, o mandamento do amor, a dignidade da pessoa criada à imagem de Deus, o conceito de pecado ou o quinto mandamento. Não podemos dizer que este ou aquele é, ou não é, cristão pela forma com que ele organiza tais preceitos éticos. Tanto faz se um dá preferencia para um preceito em detrimento de outro, ou se os organiza em ordem lexical, ou se os coloca simplesmente um ao lado do outro dando o mesmo peso. Todos estes cristãos estão refletindo a partir das escrituras e não estão colocando em cheque as doutrinas fundamentais dos concílios da Igreja Antiga. Claro, quero resguardar a qualquer grupo cristão o direito de fazer considerações críticas, contrapontos, contrapropostas. Esta diversidade é importante e ajuda na formulação de ideias mais conscientes e biblicamente coerentes. Mas por favor, faça suas considerações fundamentando nas escrituras e na reflexão teológica de forma dialogal e não como anátemas. Ou seja, discorde na esperança de que seu parceiro de diálogo possa mudar, não desejando jogá-lo no inferno.

Que sejamos mais unidos, a despeito das nossas muitas diferenças. Nesta Corinto moderna que é a internet, que sejamos conscientes que Paulo chamou tanto “esquerdistas”, quanto “direitistas”, tanto “abortistas”, quanto os do “direto à vida”, tanto conservadores, quanto progressistas de SANTOS! Sejam portanto santos, e se comportem em relação aos seus irmãos na fé como santos, mesmo que em assuntos secundários vocês pensem diferente.